Tampouco o cristianismo é um Estado. Qualquer religião pode encontrar-se pulverizada e enfronhada em Estados. E inclusive, nesta condição, praticar uma guerra assimétrica. Nada de novo, isso já foi feito em torno de religiões, de causas ideológicas, ou para repelir invasores... há mais formas de dar unidade e coesão.
E todas elas são a peste para exércitos regulares, como os Cruzados descobriram.
Sobre o sentimento religioso entranhado no casus beli, como Tomás de Aquino expõe em sua definição de Guerra Justa (definição que pode ser calcada em sentimentos civis como a doutrina do Destino Manifesto, que é um pilar da "religião civil" conhecida por americanismo).
Eu vou agora levantar uma bola pra ti chutar a gol, mas como eu sou o Diabo, eu vou levantar ela com efeito: dois autores conservadores, de pendores perenialistas, vão ao encontro de algo que depõe a favor do que está implicado no teu argumento. Spengler descrevia como Ceasarianismo o período histórico (ele via a historia como cíclica, eis seu pendor perenialista) em que as instituições são esvaziadas de significado (entre eles principalmente o religioso) e passam a sustentar-se em si mesmas e sua autoridade calcada na sua capacidade coercitiva. E Évola, posteriormente a Spengler, expõe como sintomática a criação da "Pátria" como substituto (pobre) à junção de poder espiritual e poder temporal do Monarca.
Note que eles falam não apenas no poder catalizante destas instituições mais ricas e mais antigas (mais tradicionais) em relação às modernas, não apenas no sentido bélico, mas de sua significância mesmo no dia a dia das nações. Que manifestem-se com força em caso de guerra, no sentido de uma maior convicção que resulta em união e espírito de sacrifício em torno de algo maior que a vida terrena e mundana, é culminação de algo existente no dia a dia de sociedades tradicionais.
Ergo, é claro que podemos concordar que entre a Guerra Santa e um, em última instância, "Embate entre Instituições" (como é a guerra moderna), vai uma longa distância (senão quantitativa, qualitativa).
Veja, falamos de raízes aqui. De precondições do imaginário moral, do sentimental, e intelectual de uma população. São bases.
Até mesmo o cobra-cabeçuda do Dawkins recentemente, compreendendo a incapacidade do Secularismo em oferecer orientação em comparação ao Islã (e ele é um cara puramente utilitário nisso) declarou-se "Cristão Cultural".
Ele não disse bobagem em pelo menos um sentido: o de que mesmo boas idéias "seculares" muitas vezes encontram sucesso somente quanto predicadas numa sensibilidade cristã. Exemplo: ainda ontem eu lia sobre uma rapaziada do curso de robótica de uma outra cidade que, entre tantas coisas impressionantes para fazer, optou por automatizar uma cadeira de rodas para um senhorzinho que, viúvo, sequer conseguia mais sair na rua sem a ajuda de sua falecida senhora. A gente acha lindo. Mas sentimento cívico sozinho é incapaz de imbuir uma beleza moral ao ato dos rapazes. Somos tocados por todo o simbolismo que antecede estes esqueminhas de "marketing do bem", quer seja, o próprio exemplo da bondade de Cristo que somos ensinados (e mesmo os meramente batizados, não catequisados, tomam contato com esta, ainda, talvez não por muito tempo).
Agora veja você, isso são coisas muito importantes. Eu não tenho talento para a vivência religiosa (ao menos não a comunitária como se dá), mas em qualquer discussão, tomo parte pelos cristãos. Tomo a árvore pelo fruto e gosto do humanismo produzido pela espiritualidade cristã, com o qual a secular sequer se compara em termos de compreensão da vida e das pessoas.
É certo, e aqui não teremos discordâncias, que temos sorte de ter essa herança.
Tendo essa parte contemplada, a forma como a cristandade - hoje - ainda faz um excelente trabalho em imbuir as pessoas de uma sensibilidade para a beleza moral personificada na prática do bem, do perdão, do despojamento (algo há de moderar as vaidades), das virtudes maternas de Maria, e etc...
... eu torno a me lembrar que raramente, e nunca em uma homília, fui explanado sobre as virtudes heróicas dos mártires. Sobre a coragem moral ativa dos cavaleiros das ordens militares.
Poderia ser que em tempo de paz, essas coisas são postas de lado? Mas nem toda a cristandade está vivendo em um tempo de paz.
Poderia ser porque se por um lado a vida paroquiana não é um reflexo direto da teologia (é sempre uma versão simplificada e deficitária desta), por outro o somatório das paróquias faz a cristandade como um todo, e esta, no seu contexto atual, em que tudo é visto sob as lentes da mentalidade burguesa e mercante, terminou por "desdentar" os aspectos heróicos do cristianismo que fossem inconvenientes ao fluxo de mercadorias e capitais? Olhe, eu às vezes suspeito que a flácida complacência, do Vaticano à paróquia, em relação a coisas como a usura, pode ter a ver com isso... (e há o problema de que muitos conservadores são cristãos, mas ao mesmo tempo defensores do capitalismo, vide o chiste de Dom Helder Câmara: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto porquê os pobres não têm o que comer, me chamam de comunista". Dom Helder parecia conhecer este problema, e Chesterton também, embora os conservadores tomem o cuidado de não citar Chesterton para além da defesa do cristianismo, deixando de fora coisas que Chesterton atacava).
Ou talvez não é papel da Igreja preparar o espírito do guerreiro no que tange às virtudes de campanha? Pode ser. Mas neste caso, parece que ninguém mais está, salvo as instituições dedicadas a isso e em relação somente aos seus recrutas - ao homem comum resta apenas tentar ter vergonha na cara e evitar se bundamolizar demais.
E ainda um último questionamento que me faço e que incluo nos que estou a dividir contigo: não deveria a Igreja, na sua exposição da Doutrina Cristã, contemplar também os aspectos mais solares e masculinos da mesma (que alguns dizem não existir e outros dizem que existe, mas em ambos os casos permanecem obscuros)? OU, noutro giro, não, não deve, pois não deve a Igreja se conduzir pelas necessidades dos fiéis (mesmo que espirituais) e sim os fiéis é que devem dedicar-se às demandas espirituais da fé cristã, contando com os que lhe é passado pela Igreja, ainda fracionado e focado às virtudes mais pacíficas?
Quando a gente começa a pensar nisso, coisas como "secularismo" e "Islã" viram ecos distantes, um barulho ali na rua.