Ashura escreveu: "Outro exemplo de romantização do Oriente é a visão que nós temos (e mesmo os orientais modernos) dos samurais e do "bushido" (uma "invenção" do séc. XVIII)."
Segundo ocidentais, todos os bushi seguiam o bushido e nenhum cavaleiro seguia os galantes códigos de cavalaria.
Ocidental jura de pé junto que o "Sultão José" era mais parecido com um cavaleiro do que a porra do Richard the Lionheart.
Verdade. Tem também o mito de que os muçulmanos já tinham uma "ciência avançadíssima" enquanto os cristãos obscurantistas passavam o tempo queimaindo suas mentes mais brilhantes.
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Quanto ao
bushido, não é que tenha sido uma palavra usada para delimitar algo que existia desde o princípio da classe
bushi, mas que ainda não tinha um nome. É que o próprio conceito é uma invenção moderna. Obviamente, já havia entre os
bushi — assim como em qualquer classe guerreira mundo afora — um
ethos, um conjunto de hábitos e virtudes desejáveis. O que não havia era um código de conduta com preceitos claros para a estrita observância dos samurais (aka
bushido), especialmente no que tange às questões de lealdade incondicional e uma atitude de desprendimento diante da morte.
Sim, havia lealdade entre um samurai e seu suserano, mas essa lealdade era contingente: se este começasse a descumprir sua parte no acordo, o samurai podia pular fora e se avassalar com outro
daimyo. Além disso, a lealdade não era o valor máximo entre os
bushi, mas sim, sua habilidade de luta, a capacidade de fazer o inimigo sangrar. Isso foi especialmente verdade no Período Sengoku (a Era dos Estados Combatentes), sobre o qual histórias de traições são abundantes — mesmo entre os
daimyo, que disputavam o cobiçado cargo de unificador do Japão. Da mesma forma, a ideia de suicídio seguindo a morte ou desonra do
daimyo era estranha nesse período. O mais comum (e mais lógico) era que o samurai derrotado preservasse a própria vida e simplesmente trocasse de “patrão”.
Então como surgiu esse troço chamado
bushido? Bem, com o fim da Batalha de Sekigahara (1600) e o estabelecimento do xogunato Tokugawa (dando início ao Período Edo), o Japão experimentou uma situação até então inédita: uma paz que durou por mais de 250 anos — interrompida somente pelo cerco de Osaka e a revolta de Shimabara (que resultou na perseguição de cristãos e o banimento do Cristianismo do país). E nessa fase de transição surge uma crise de identidade já na primeira geração de samurais da Era Tokugawa: passaram de guerreiros temíveis à funcionários públicos. Não havendo mais guerras para lutar, a habilidade em combate torna-se irrelevante e se inicia a busca por novos valores, mais apropriados para samurai dos novos tempos. É nessa
Pax Tokugawa, então, que surgiram as primeiras tentativas de se definir um código de conduta para os samurais, notavelmente, o
Shido de Yamaga Soko e o famoso
Hagakure (1716) de Yamamoto Tsunetomo. Soko, como mestre confucionista, tentou equiparar o ideal de samurai ao homem superior (
Junzi) do confucionismo. Já Tsunetomo, que enxergava a decadência dos samurais de sua época, escreveu anedotas em tom nostálgico, encorajando um retorno aos valores passados. Ou seja, era o código pessoal de um único homem baseado em sua visão romântica e idealizada dos antigos guerreiros. Sua ideia de lealdade incondicional ao seu senhor, por exemplo, chega a ser devocional, de modo que se sugere (sem muita surpresa, por ser prática comum do período) uma relação homossexual entre ambos. É uma obra interessante — especialmente quando trata da meditação sobre a morte —, mas que não foi lida por nenhum de seus contemporâneos.
É também nesse período, sem guerras e com raras oportunidades para a troca de suseranos, que o
seppuku é romantizado e se torna prática comum.
Foi somente algum tempo depois, no séc. XX (na Restauração Meiji), que o conceito de
bushido foi amplamente difundido no Japão, com a publicação de
Bushido: the soul of Japan (1899) por Inazo Nitobe. Essa é a obra que basicamente criou a visão moderna do conceito. O curioso é que foi publicada originalmente em inglês e somente traduzida para o japonês 10 anos depois. O próprio Nitobe, um cristão que estudou um bom tempo nos EUA, tinha mais intimidade com a língua inglesa e a literatura ocidental do que com a própria língua pátria. A obra surge então, como uma propaganda para o ocidental do até então pouco conhecido e exótico Japão: “vejam só, somos civilizados, temos até mesmo a nossa própria versão de ‘gentleman’. O
bushido de Nitobe é basicamente uma mistura das virtudes samuraicas com as virtudes cristãs e o "chivalry" europeu, e foi vendido para o Ocidente como o espírito original do povo japonês, sua identidade nacional, a “japanidade”. O conceito foi inicialmente rejeitado no Japão, mas isso logo mudou quando foi abraçado pelo governo (alguém disse lealdade incondicional ao Imperador? Oba!) e incluído no currículo educacional como matéria de ética. É também nesse período que surgem as artes marciais modernas (
gendai budo), que assimilaram naturalmente a ideia.
Pouco tempo após essa intervenção estatal, praticamente todo o povo japonês havia incorporado a ideia de
bushido, e com muito mais força, a classe militar. Uma imagem utilitária e brutal do samurai foi utilizada como propaganda nacionalista e o suicídio ritual foi encorajado como alternativa à redenção ou morte indigna (é nesse meio que o
Hagakure é redescoberto). É daí que surgem os “banzai charges” e os kamikazes da Segunda Guerra. Com o fim da guerra e a ocupação aliada no país, o
bushido foi novamente rejeitado, dessa vez associado negativamente aos excessos do exército imperial.
Modernamente foi adaptado como filosofia prática para o mundo dos negócios e continua popular entre executivos e estudantes de artes marciais. No fim das contas, o
bushido é uma mistura de vários conceitos e é bastante maleável. Você nem precisa ter olho puxado ou pertencer à alguma casa nobre para praticá-lo, seja lá o que isso queira dizer. Fugi totalmente do tópico, mas aproveitei o gancho porque esse assunto é legal pra caramba. hehehe
Última edição por lucasao em 22/11/15, 01:43 am, editado 2 vez(es)